RIO - O carro, modelo popular, bem rodado, segue pela Rua Correia Dias, no bairro carioca de Vigário Geral. Ao volante, o cantor Carlos Dafé evoca, muito falante e simpático, as lembranças dos tempos de juventude. E, antes de fazer a curva, aponta para a casa onde morou com os pais, na parte mais alta da via.
— Era ali onde rolava a parada. Onde iam Tim Maia, Oberdan (Magalhães, da Banda Black Rio), João Nogueira, o Grupo Senzala... Tinha um barraquinho de madeira que eu forrei todo de esteira, pra fazer som. Cada hora chegava um artista, formei uma república — conta Dafé, grande nome da soul music brasileira, que há três anos voltou a morar em Vigário, localidade até hoje associada à chacina de moradores em 1993, mas cheia de boas lembranças para ele.
Foi nesse bairro que Dafé compôs alguns de seus maiores sucessos. O maior deles foi “Pra que vou recordar o que chorei”, um samba-soul que, com suas mais de cem regravações (“Em português, inglês, espanhol e até em russo, me disseram”, conta), deverá ser o hino da noite de amanhã, no Teatro Rival, no show de comemoração dos 65 anos de idade do músico. Amigos e discípulos, como os cantores Rogê, Gabriel Moura e Dhema, estarão lá para reverenciar esse mestre em busca de melhores dias.
— Morei em outros bairros até mais desenvolvidos, mas tem um ímã que me segura aqui — alega o cantor, que está construindo uma casa no bairro enquanto vive de aluguel em outra.
Na Praça Catolé do Rocha (onde, numa coincidência nefasta, foi tramada a chacina de 1993), um coreto e um clube, a União Cívica de Vigário Geral, trazem para Dafé a memória de tempos em que a área tinha música de sobra (orquestras, bailes, saraus), além do clima e da cordialidade de uma cidade do interior. Foi ali, 40 anos atrás, que ele chegou depois de uma noite de trabalho como baixista na banda do Hotel Nacional, com a cabeça aturdida pelo luto por uma das bailarinas do show (que havia se matado) e a preocupação com outra (que ameaçava ir pelo mesmo caminho). “Pra que vou recordar” saiu ali, de uma vez só, como alento.
Marvin Gaye brasileiro
— É um dos cinco maiores clássicos do soul brasileiro. E a voz do Dafé é lancinante, o que só torna a canção mais incrível. Agudinha, bem diferente do padrão do gênero, que era o das vozes graves — conta o jornalista Nelson Motta, que certa vez chegou eleger Tim Maia e Dafé, respectivamente, Rei e Príncipe do Soul do Brasil. — Ele era muito magrinho, bonitinho e marrento, as mulheres adoravam. Num certo sentido, Tim era James Brown e Dafé, Marvin Gaye.
Nascido em família de músicos, José Carlos de Souza estreou em disco em 1970, num hoje disputado LP da banda Fuzi 9, de fuzileiros navais. Depois de um estágio na soul music com o grupo Abolição, do pianista Dom Salvador, gravou, em 1972, um compacto. Tim Maia gostou do que ouviu e chamou Dafé para tocar teclados em sua banda. Em 1977, quando a gravadora WEA começava a montar seu elenco, de olho no movimento Black Rio, acabou achando o cantor. Com produção de Marco Mazzola, o LP de estreia de Carlos Dafé, “Pra que vou recordar” estourou, além da faixa-título, músicas como “Tudo era lindo”, “De alegria raiou o dia” e “A cruz”. Vendeu mais de 240 mil cópias e, segundo Mazzola, por pouco não chegou a Disco de Platina. No show de lançamento, no estádio do Palmeiras, em São Paulo, o cantor de repente se viu diante de 12 mil pessoas. Que cantavam tudo.
Acidente de carro o deixou desmemoriado
Na época do segundo disco, “Venha matar saudades”, de 1978, os ventos começaram a mudar para Carlos Dafé: um acidente de carro, na Tijuca, o deixou temporariamente desmemoriado. Nos discos seguintes, as músicas foram tocando menos e menos. Depois, até mesmo lançar discos seus ficou difícil. O último foi “O seu jeito de olhar”, de 1997, produzido por Gabu, do Raça Negra.
— Houve um preconceito, porque o Gabu era do pagode. Mas as músicas desse disco têm metaleira, têm acordes pra caramba — lamenta Dafé, que há quatro anos gravou o CD “Bem vindo ao baile”, a convite dos músicos Felipe Pinaud e Marlon Sette, com participações de Marcelo Yuka, BNegão, Zeca Baleiro e Toni Garrido.
— Havia várias gravadoras interessadas em lançá-lo, uma até com contrato na mão. Mas ele só favorecia a gravadora — conta o cantor. — De vez em quando recebo convites para gravar um disco, mas me sinto na obrigação moral de não gravar outro até esse sair.
Com mais de cem músicas gravadas, por nomes como Tim Maia, Alcione, Nana Caymmi e Beth Carvalho, Carlos Dafé diz que não consegue viver apenas de direitos autorais. A execução de suas composições é sempre incerta.
— Às vezes, vêm uns cinco mil (reais). Você se prepara para o recibo do próximo mês. E aí o valor cai — relata ele, que completa o orçamento fazendo shows, boa parte deles como convidado das estrelas.
Zeca Baleiro, que carregou Dafé para um de seus Bailes do Baleiro no Canecão, lembra:
— Ele deitou e rolou. Dafé tem um carisma incrível e é uma pessoa muito amorosa. E é subvalorizado, como tantos.
— De todos os grandes do soul brasileiro, o Dafé é o mais injustiçado — acredita Rogê, discípulo que garantiu presença amanhã no Rival. — Ele teve uma influência direta de Stevie Wonder, é excelente pianista e cantor, mas ficou meio que restrito ao gueto dos músicos.
Mas surpresas boas também têm aparecido na vida de Carlos Dafé. Como em 2009, quando foi convidado pelo arranjador carioca Arthur Verocai para participar, em Los Angeles de “Timeless”, concerto em que faria a recriação de seu cultuado LP de 1972.
— No fim de 2008, eu estava numa consulta espiritual e o rapaz disse: olha, você vai ser convidado para fazer uma viagem, e você vai cantar umas músicas dos anos 1970 — conta o artista, que nem suspeitava que fosse de Verocai o disco (e tampouco imaginava que iria repetir a dose, pouco depois, em Amsterdã).
Abstêmio há três anos (“Tive que tomar uma atitude pela saúde e pela idade, porque a minha intenção é durar um pouco mais”, diz), Dafé sente falta de ser o dono do palco.
— Na real, sabe quem sente mais falta de eu fazer meu show? É o meu público, que vai lá, vê meu nome, e acha que eu vou fazer meu show — desabafa. — Mas não vou perder essas oportunidades de mostrar a um público novo que eu existo. Tenho uma convicção: eu nasci pra isso, quero isso e vou continuar fazendo música.
Como vai você, geração Soul Anos 70?
Cassiano
O último disco foi “Cedo ou tarde”, de 1991. E não há notícias de shows. O autor (e cantor) dos clássicos “A lua e eu” e “Coleção” persiste como o recluso da turma.
Hyldon
Sucesso com “Na rua, na chuva, na fazenda”, o cantor segue com CDs, shows e canções. Em junho, esteve no Rock in Rio Lisboa com o grupo português Orelha Negra.
Gerson King Combo
Redescoberto pela juventude no fim dos anos 1990, o James Brown carioca voltou a gravar e virou atração em projetos de revival do soul dos anos 1970.
Lady Zu
A diva brasileira da disco music, do sucesso “A noite vai chegar”, encontrou seu lugar na dance music e nas festas de recriação dos embalos de sábado à noite.
Toni Tornado
Depois de décadas dedicado aos trabalhos como ator na TV, o ícone black, cantor de “Podes crer, amizade”, voltou aos palcos, de mansinho, no ano passado.
'Causos' de um cantor muito desembaraçado
“O Jackson Five veio ao Brasil e, quando eu vejo, lá estão eles no Hotel Nacional. Eu cantava fininho, e não à toa era fã do Michael Jackson. E gostava de mandar meu inglês, meu portunhol. Fui lá e falei: ‘Ô, Michael, Carlos Dafé...’ Ele, querendo me entender, e eu, querendo entender ele... E a gente se entendendo! Me perguntaram depois qual ideia eu tinha trocado com o ele. E eu disse: ‘Foram altas ideias!’”
“A Amy Winehouse veio ao Rio e foi aquela loucura para vê-la no hotel em Santa Teresa, lembra? Pois aí o pessoal do coletivo Instituto me chamou para participar do show de abertura da Amy em São Paulo. Ficamos no mesmo hotel. De repente, eu estava na beira da piscina, no bar, tomando um negocinho, quando eu vi: era a Amy! Fui lá trocar aquela ideia... E não é que era só um clone dela, pra despistar? Eu todo bobo, indo lá tirar foto...”
“Cheguei na casa do Tim Maia e estava tudo mudado. O pessoal todo vestido de branco, ele barbeado… Aí o Tim chegou para mim e disse: ‘Você não é mais Carlos Dafé, você é o Carlos Racional!’ Me deu roupa branca e mandou ler três livrinhos do Universo em Desencanto. Algum tempo depois, fui lá no seu Manuel (Jacinto, fundador da Cultura Racional), em Belford Roxo. Três meses antes, eu tinha assinado contrato com a Som Livre, mas não tinha acontecido nada. Perguntei qual ia ser meu destino e ele disse: ‘Meu filho, você está em que livro?’ E eu: ‘No terceiro’. E ele: ‘Releia.’ Bom, aí é que acabou não acontecendo nada mesmo…”
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