O segundo dia da etapa Marés Vivas concretizou-se esta quinta-feira, ao som de algum revivalismo enquadrado com músicas mais frescas, de que foram exemplo as propostas rumadas até ao Palco TMN.
Num cenário idílico de vistas para as margens da cidade do Porto, os Gun aqueceram (ou não) o espaço ventoso que mais tarde veio a protagonizar aulas essenciais da história do rock, leccionadas pelos Cult, e um regresso a um passado mais recente motivado pela lista de êxitos debitada pelos Garbage.
Aos The Eleanors, grupo de quatro maiatos de blazers axadrezados e muita pintarola, óbvios aspirantes a meninos bonitos do rock internacional, a julgar pelas investidas lá fora (até Ken Nelson, produtor dos Coldplay, já ouviu falar deles), coube a excelsa tarefa de inaugurar a programação do segundo dia de Marés Vivas, a bordo do Palco Moche, ancorado no Cabedelo, em Vila Nova de Gaia. Praticantes de um rock apopalhado com laivos de eletrónica dançante, com vocalizações a remeterem, quase de imediato, para uns The Killers, não custa nada imaginá-los no meio do público de Franz Ferdinand, que ontem encerraram a noite de festival.
“Está tudo fixe?”, questionou Miguel Rizzo, vocalista e guitarrista, enquanto destacou o quão bom lhe era estar a tocar em território conhecido. “Esta música tem tudo a ver connosco e convosco: chama-se Get Your Feet Back On The Ground”, o que nos soa a severa consciencialização de uma certa necessidade de amadurecimento. Haja oportunidade!
Temas como Are You? e We Shock It Again entremearam esta passagem por sonoridades de guitarras em ritmos de dança, que não voltaram a tardar ao palco, com a segunda proposta mistério da tarde.
Quatro anos depois de se ter estreado no palco do Marés Vivas – performance que fez questão de recordar com carinho, a meio do concerto de ontem, apontando-a como responsável por muito do sucesso desde então conquistado –, Slimmy regressou ao «local do crime», agora moreno, mas mantendo a óbvia irreverência que toma conta dos seus trajes e postura, e impede, para todos os efeitos, que caia no esquecimento dos portugueses, após ausência prolongada dos escaparates musicais.
Os apelos do cantor a uma maior movida no palco secundário – “vamos curtir, vamos dançar, então?” – foram tidos em conta pelo público generoso que ali se juntou, que pareceu reconhecer com facilidade os acordes de The Games You Play e Show Girl, que Slimmy garantiu ter sido, em tempos, responsável pelo aumento da natalidade em território luso. Se ele o diz, nós acreditamos.
São escoceses, mas ninguém diria, a avaliar pela pronúncia quase irrepreensível do saltitante vocalista do grupo, que atira “obrrrrrrrigados” a torto e a direito, entre músicas, e ainda arrisca, de longe a longe, algumas frases mais ambiciosas em português. Contudo, se têm nota máxima nos esforços linguísticos, os Gun não parecem convencer no que às lides rock n’ rolescas diz respeito, com uma assistência pouco entusiasmada que, nem perante o maior êxito do coletivo – curiosamente uma versão da Word Up, dos Cameo, dá grandes mostras de regozijo.
O tempo de antena foi aproveitado, em grande parte, para dar a conhecer os novos temas da banda, como Break the Silence, faixa título do novo álbum que evidencia uma faceta menos crua do grupo, que deu por terminada a sua passagem por territórios lusos com Shame on You, música de trato relativamente fácil, que despertou os mais indolentes dum hiato físico, que se manteve, invariavelmente, ao longo de toda a performance.
Os The Cult podem estar velhos, mas ainda estão para as curvas. Foi mais menos isto, mas com expressão idiomática adequada, o que Ian Astbury quis dizer quando se referiu à banda como “velhos tigres”. Tal veio a confirmar-se, naturalmente, sem quaisquer indícios de velhice, a não ser uma certa nostalgia provocada pelos retrocessos temporais a que levaram os grandes clássicos da história do rock revividos esta noite.
Lil’ Devil abriu o desfile de riffs poderosos que, suportados por uma secção rítmica muito forte, deram azo a um desempenho vocal irrepreensível, pautado por malabarismos de pandeireta e movimentações estilosas dignas de deixarem Ricky Wilson, que subiria ao palco mais tarde com os Kaiser Chiefs, envergonhado. Para o final, Love Removal Machine assumiu-se como tema de despedida, antecedido por She Sells Sanctuary e um dos riffs mais reconhecidos da história da música que, curiosamente, não chegou a despoletar uma reação tão calorosa como aquela que se aguardava. No entanto, o concerto foi muito bem recebido no geral, a provar, mais uma vez, que os apreciadores de sonoridades mais duras gostam de marcar presença em terras de Vila Nova de Gaia.
Apesar da bandeira da Union Jack a ornar o cenário, remetente para uma imagética mais punk ou mod, a sonoridade dos The Paperboats está muito longe de roubar influências às terras de sua majestade. A justificação para o décor prender-se-á com a naturalidade do vocalista Paul da Silva, nascido em Londres, que curiosamente enverga por um rock mais americanado, com laivos de post-grunge, onde a sua voz encaixa na perfeição.
Os segundos vencedores do concurso levado a cabo pelo Palco Principal, a quem foi garantida a estadia no palco secundário, estrearam-se para muito pouca gente, mas acataram a tarefa como se o estivessem a fazer para uma multidão, o que cremos que lhes tenha valido um acréscimo de afluência ao longo do concerto. Pop-rock coeso, bem construído em tonalidades roucas, que bem pareceu agradar quem se manteve pela área. Temas como Curses, o single, e Spy Ritual fizeram parte da mostra de canções.
Contrariamente ao domínio de miudagem do primeiro dia, o público da segunda noite de festival proveio de uma faixa etária mais avançada. Os culpados, para além dos Cult, terão sido, sem sombra de dúvida, os Garbage, banda-sonora da adolescência de quem hoje se encontrará mais ou menos pela casa dos 30.
O maior sucesso e as maiores agitações deveram-se precisamente aos temas mais antigos, com I’m Think I’m Paranoid, de "Version 2.0", a atestar um alinhamento que se pautou, salvo raras exceções, pelos hits do passado.
Shirley Manson, de semblante andrógino e invulgar, do alto da sua postura burlesca em trajes rebuscados e muito apelativos, antes de prosseguir, deu ainda uma pequena lição de história, ou de boa turista, sobre a cidade do Porto, que disse ter visitado durante a tarde. Desdobrada em elogios certeiros ao ego nortenho, comparou-a ainda à cidade a S. Francisco, construída por mãos portuguesas, e a Goa, na Índia, que fora colonizada pelos portugueses.
Numa esquizofrenia entre o doce e o diabólico, a vocalista decidiu libertar alguma da sua raiva menstrual (referência feita pela própria), ao insurgir-se contra desacatos e a ameaçar quem se atrevesse a importunar quem quer que fosse durante o concerto. Uma estranheza equiparável ao momento You Look So Fine, numa intro a capella, que acabou por ficar pela metade, entre gargalhadas demoníacas, porque algo não correra como o previsto - “Rogaram-me uma praga!”, desabafou a cantora escocesa.
Queer, Special, Push It, Stupid Girl foram os temas que mais bem fizeram a atuação, que culminou, sem surpresas, numa versão menos acelerada de Only Happy When It Rains, o tema mais emblemático dos Garbage.
A presença dos Kaiser Chiefs na edição deste ano do Rock in Rio Lisboa, há pouco mais de um mês, e o regresso precoce da banda ao Cabedelo, onde Ricky Wilson e companhia atuaram há três anos atrás, na edição 2009 do certame, faziam os fãs mais pessimistas – e menos conhecedores dos indiscutíveis dotes performativos do vocalista – prever, para o encerramento do palco principal no segundo dia do Marés Vivas tmn, uma atuação morna, previsível, rotineira. Puro engano. Tais adjetivos não constam, definitivamente, no dicionário de palco dos Kaiser Chiefs que, ontem à noite, voltaram, à semelhança do que já tinham feito num passado recente, a incendiar a marginal gaiense com interpretações poderosas, muito boa disposição e a rebeldia do costume.
Ricky Wilson é um animal de palco. Daqueles grandes, selváticos, que, quando menos esperamos, atacam. Logo ao segundo tema – Everything Is Average Nowadays – lança-se para os braços do público, ainda em recuperação da energia investida em Never Miss a Beat, tema de abertura, que o recebe algures entre a incredulidade e o delírio. Por que esperar pelo final do concerto para arrasar, se é possível fazê-lo nos primeiros minutos de atuação? Pois claro! Ao longo de hora e meia de concerto, nada parece desgastar o mais que tudo dos Kaiser Chiefs. Ele dança, ele esperneia, ele percorre o palco duma ponta à outra vezes sem conta, imparável, sempre em contínuo flirt com o público, do qual se aproxima constantemente, para um ou dois dedos de conversa, um ou outro piscar de olho. A relação com a família audiovisual também parece de boa saúde – obrigada -, com Wilson a aproximar-se das câmaras sempre que lhe é permitido, às quais oferece, de mão beijada, poses previamente estudadas e charme em abundância. Se há quem goste de ser venerado, esse alguém é Ricky Wilson – disso não temos dúvida.
Em I Predict a Riot, segunda faixa do álbum de estreia, que, de resto, continua responsável pelos momentos mais memoráveis das performances da banda, com as orelhudas Everyday I Love You Less and Less e Na Na Na Na Naa a fazerem, também, as delícias do público, que a estas se entrega de corpo e alma, opta, à falta de um slide para descer (bónus Rock in Rio Lisboa 2012), por empoleirar-se nas laterais do palco, com uma destreza que deixaria, certamente, muito homem aranha roído de inveja. Mais tarde, já quase em modo encore, embalado pelo poderio de Ruby, presença assídua no alinhamento dos espetáculos da banda, escala a encosta que ladeia o recinto, deixando os mais céticos perplexos com tamanha agilidade. Tem o diabo no corpo, este senhor.
Num espetáculo que pouco foi beber ao mais recente disco do coletivo, “The Future Is Medieval”, do qual foram repescadas apenas Kinda Girl, logo ao terceiro fôlego, e Little Shocks, houve ainda tempo para duas novidades – On The Run, faixa presente na reedição norte-americana do último álbum, e Listen to your head, a música “favorita de sempre” de Ricky Wilson – e uma incursão pelos tempos em que a banda ainda se dava pelo nome de Parva, protagonizada por Put Me On The Cover of Your Magazine, lado B de Hessles, single de “22”.
All night Long, ou quase, o palco secundário responsabilizou-se pela animação dos noctívagos que permaneceram pela praia do Cabedelo.
Hoje tocam os muito populares Azeitonas e Billy Idol, ícone da década dos anos 80. A festa, terá lugar mais para o fim, com os Gogol Bordello, a prometerem muita animação em boas doses de excentricidade.
Texto: Ariana Ferreira e Sara Novais
Fotografias: Filipa Oliveira
Nenhum comentário:
Postar um comentário