Stevie Wonder em dose dupla:
Do outro lado da linha telefônica, a voz de Stevie Wonder, 62, é de um entusiasmo tão contagiante quanto a sua própria música.
— Será a minha primeira vez no Rio num Natal. Estou muito animado, ainda mais porque vou fazer parte dele — diz o cantor, em entrevista exclusiva ao GLOBO, alguns dias antes dos dois shows que faz na cidade com Gilberto Gil: o de hoje, para poucos, com renda em prol da Sociedade Viva Cazuza, no Imperator; e o de terça-feira, dia de Natal, para as multidões, na Praia de Copacabana. — Já passei alguns Natais fora de casa, na estrada, mas tem um bom tempo que não faço isso. Desta vez vou levar comigo meus dois filhos (
Kailand, de 10 anos, e Mandla, de 7, que ele teve com a designer de moda Kai Millard, de quem se separou este ano).
Uma daquelas figuras fundamentais da música do século XX, que alargou os horizontes do pop com canções repletas de musicalidade, espiritualidade, amor e consciência política, Wonder volta à cidade que o viu tocar e cantar em duas felizes ocasiões: em 1995, no Free Jazz, e em 2011, no Rock in Rio.
— Também estive aí no Rio no começo dos anos 1970 (
em 1971, para participar de programas de TV), quando estava começando com meu grupo e com tudo mais. Mas sempre apreciei a música do Brasil — lembra ele, que em seus shows por aqui já atacou de “Você abusou” (Antonio Carlos e Jocafi) e de “Garota de Ipanema” (Tom e Vinicius). — Gostei muito das pessoas que conheci aí e também de quando fui à Bahia, alguns anos atrás (
em 2006, para participar, em Salvador, da 2ª Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora).
Um dos grandes da MPB, cuja música sempre dialogou com a africanidade, Gilberto Gil tem sido o anfitrião de Stevie Wonder no Brasil desde que os dois se conheceram, em 1977, em Lagos, na Nigéria, na casa do pai do afrobeat, Fela Kuti. Em 1995, encontraram-se no palco. Em 2011, as agendas se chocaram.
— Quinze minutos antes de começar o show no Rock in Rio, à uma da manhã, Stevie me ligou, perguntando se eu não ia — rememora Gil, por telefone, depois de um ensaio do show com o qual vai abrir as apresentações de Stevie, com participação da filha, Preta Gil. — Eu tinha acabado de voltar de viagem, estava morto de cansado. Mas no dia seguinte fui vê-lo no Copacabana Palace. Passamos a tarde conversando.
Até a última quinta-feira, eles não tinham conversado sobre o que fariam juntos. Só o que Gil tinha de certo era a ceia de Natal, na qual promete servir peru com farofa ao ilustre convidado.
— Stevie adora farofa! — confidencia. — Quando me apresentei em Washington, e ele acabou fazendo uma participação, eu o levei depois do show a um restaurante brasileiro. Ele dizia: “Que coisa gostosa de pegar essa farofa!”
Enquanto isso, Stevie Wonder fazia seus planos para o encontro musical.
— Tem uma canção que Gil me mandou, uma peça de Natal, que eu vim ouvindo esses dias, tentando fazer algo — conta, também sem adiantar muita coisa. — Estou trabalhando duro para fazer algumas surpresas aos cariocas.
Stevie Wonder diz que os dois shows no Rio serão bem diferentes.
— O segundo será no dia de Natal, o primeiro Natal que eu passo no Brasil. Isso é muito especial para mim. Vamos tocar todas aquelas canções que as pessoas conhecem — diz ele, que voltou a excursionar com mais regularidade em 2008. — Adoro tocar ao vivo. O que aconteceu foi que em 2006 eu perdi a minha mãe. Algum tempo depois, eu tive um sonho em que ela me dizia que eu tinha que seguir com minha música, com aquilo que eu amava.
Legado celebrado
Em 2012, completaram-se 40 anos de “Talking book”, álbum que consolidou sua independência artística, rompeu barreiras musicais e fez circular os grandes hits “You are the sunshine of my life” e “Superstition”. A cantora Macy Gray abriu os festejos lançando, recentemente, um CD no qual regravou cada uma das faixas desse clássico.
— Gostei muito do jeito como ela reinterpretou as canções, um jeito diferente, único — elogia Stevie Wonder. — Liguei para ela, para agradecer. Era algo que ela nem precisava ter feito.
Ao mesmo tempo, o legado de “Talking book” se mostra vivo na emergência do R&B alternativo e de seu resgate, no contexto da música pop negra, da melodia e das ideias ambiciosas. Presente em boa parte das listas de melhores de 2012, o álbum “Channel orange”, do cantor Frank Ocean, puxa a onda de
filhos de Stevie Wonder.
— Fiquei muito feliz por isso tudo e também pelo Frank — diz. — Ele está levando a música e as letras a um outro lugar. Há sempre algo de novo sob o sol, que o faz brilhar ainda mais.
Um dos maiores apoiadores de Barack Obama, o cantor se diz muito satifeito com a reeleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
— Espero que o mundo, e a América em especial, fique ainda mais conectado, como pessoas unidas dos Estados Unidos. E mais ainda: como pessoas unidas do mundo, para que possamos seguir adiante — conta ele, aproveitando para mencionar Joaquim Barbosa, o primeiro negro a chegar à presidência do Supremo Tribunal de Justiça do Brasil. — Se todas as pessoas pudessem ver além da cor e se unir, o mundo inteiro poderia avançar e mudar.
Mas Stevie Wonder também tem com o que se indignar na América de hoje:
— O que aconteceu em Newtown, Connecticut (
o massacre de crianças por um atirador), foi, novamente, uma mensagem para o mundo. Sempre fui contra esse acesso indiscriminado às armas portáteis. Tão louco quanto ter líderes que podem disparar ogivas nucleares é uma pessoa com uma arma na mão. Ela também pode causar destruição em grandes proporções.
De volta às boas notícias, o cantor avisa que deve lançar um disco de inéditas no primeiro semestre de 2013:
— Vai se chamar “Ten billion hearts” (
título da música que ele tocou recentemente, em show para o presidente Obama). Aliás, devo tocar essa música no show de Natal.